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Depois de Beyoncé, não veremos nenhuma performance do Coachella com os mesmos olhos

“Obrigado por me permitir ser a primeira mulher negra a liderar o Coachella”, disse a cantora.
Texto por Vinícius Zacarias

Quem assistiu o show da Beyoncé no Festival Coachella na madrugada deste domingo, 15, não conseguiu voltar a dormir. A deusa jamais igualada subiu ao palco com uma apresentação recheada de referências políticas, musicais e cênicas, ficando difícil enumerar todas neste breve texto. O espetáculo histórico e cultural, com muitas surpresas, repertório vasto e participações especiais, correspondeu a perfeição da virginiana que ficou ensaiando junto aos seus mais de 200 componentes 14 horas por dia nas últimas semanas.

Beyoncé é inerente a artista pois "reflete seus tempos", como dizia a Nina Simone, também referenciada no show junto a Malcon X e Big Freedia, uma rapper negra transviada de New Orleans. Sua direção criativa construiu complementos ao fundo do palco com composição de fanfarras. O mais notável foi o trabalho da direção musical que montou todos os arranjos das músicas com base nos instrumentos de sopro e percussão, num trabalho notadamente exaustivo. São diversas referências que vão desde os uniformes das fraternidades negras norte-americanas até as leves indiretas à ex-amante de seu marido.

Esse conceito de "fanfarras", sobre o qual me dedico a discorrer, faz referência à expressão cultural muito forte no estado do Alabama/EUA, terra natal de seu pai, aonde existem grandes organizações de escolas, bairros, corporações e concursos musicais. O Alabama também foi o palco do estopim para a organização do movimentos dos direitos civis depois que Rosa Parks, em 1955, resistiu a pressão de ceder assento no ônibus para brancos no período da oficial segregação racial no país. Apesar de forte incidência de resistência negra, o estado do Alabama é considerado o mais LGBTfóbico dos Estados Unidos.

Devido a isso, em 2015, a TV Oxigen estreou o reality show gay afro-americano de dança intitulado The Prancing Elites Project, composto por Adrian Clemons, Kentrell Collins, Kareem Davis, Jerel Maddox e Tim Smith que tentam conciliar suas vidas pessoais e profissionais na cidade de Mobile. O reality mostra o cotidiano e as provas que os meninos precisam passar diariamente, mostrando os conflitos que interseccionam os problemas de raça, gênero e sexualidade.

O reality teve apenas duas temporadas, mas destaco um dos primeiros episódios onde os meninos são desafiados a se apresentarem como balizas de fanfarra, com maiô justíssimo ao corpo e cheios de brilho, em meio a uma parada cívica tradicional. As reações foram de espanto e rejeição, gerando até mesmo represálias, como o fato de terem sido retirados do desfile por policiais. (confira o vídeo abaixo)



Para muitos de nós, negros e gays, vivemos numa celeuma identitária que imbricam diversas dores, mas que nos motivam a resistir neste mundo estruturado pelo racismo e regido pela heterossexualidade. Assim como os meninos do Elites, que também são fãs da Beyoncé, resistimos e tornamos nossas vidas possíveis através da arte. Tornamos nossa sobrevivência um produto criativo da vida.

Foi gratificante assistir um espetáculo que traz a referência cultural do Alabama intercalado com outras representações de masculinidades negras, como na sensibilidade e na capacidade da inteligência cômica dos novos dançarinos, propondo suas projeções para além do sexual, e também nas mulheres dançarinas gordas e com muita auto confiança. Faltou, claro, uma "fechação" bem viada no palco, mas tenho certeza que isso sobrou na platéia repleta de bichas pretas prontas para o ataque.

Beyoncé não é rainha, é uma deusa. Só um ser sagrado tem a capacidade de fazer de um show uma catarse de reflexão política sobre o mundo. Nina Simone deve estar orgulhosa.

Vinícius Zacarias é mestrando em Ciências Sociais, pesquisa sobre performances culturais de homens negros gays da Bahia. Siga-o pelo Facebook!
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