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Crítica: quando seu maior sonho está fadado ao fracasso, viva numa ilusão como em “Marguerite”

O brilhante filme cunha o termo médico "Síndrome de Marguerite": quando você é péssimo em algo, mas sua cabeça diz o contrário
Pense na atividade que dê o maior prazer na sua vida, aquela que você faria questão de mostrar a todos o que fez pois é seu mais absoluto orgulho. Pode ser escrever um livro, dar uma aula, dançar uma coreografia ou redigir uma crítica. E se alguém dissesse que você faz isso de forma muito ruim?

Marguerite Dumont (Catherine Frot) é uma baronesa nos seus 50 anos que vive na França dos dourados anos 1920. Muito rica e influente, a senhorinha produz festas beneficentes em seu castelo para arrecadar fundos em prol dos órfãos da guerra, regadas com muita comida e bebida à vontade. A alta-sociedade francesa comparece (e doa) religiosamente em seus encontros, o que transmite uma áurea de solidariedade nos eventos.

Marguerite também tem, assim como você e eu, uma atividade que move a sua vida: a música. Ela ama ópera e dedica sua vida para colecionar as mais famosas partituras das mais influentes peças do mundo, cantando para o marido enquanto não encontra coragem para espalhar seu talento. A paixão avassaladora que ela sente pela música quebra a timidez e ela decide cantar em um dos seus encontros. Porém, o fervor de Marguerite pela música não consegue esconder o óbvio: ela canta terrivelmente desafinada. Um verdadeiro atentado aos ouvidos, os presentes aplaudem e gritam “bravo!” para a precária apresentação, e Marguerite se sente no topo do mundo.


É assim que se inicia “Marguerite”, de Xavier Giannoli. O longa baseia-se na vida de Florence Foster Jenkins, uma socialite americana que ficou famosa pela forma desastrosa que cantava - e que teve a história contada na famosa versão americana "Florence: Quem é Essa Mulher?" (2016), estrelada por Meryl Streep. O embate aqui é claro: é melhor deixar Marguerite achando que tem a voz de um anjo ou contar a verdade?

Pode parecer muito simples essa tarefa, mas não é. O roteiro de Giannoli e Marcia Romano tece uma teia intricada de situações e personagens que dificultam uma conversa sincera com a protagonista. Mesmo sendo podre de rica, Marguerite é um poço de simpatia, possuindo tamanho amor pelo ato de cantar que fica complicado dizer a verdade. Música exala pelos seus poros, então como revelar a verdade nua e crua?

Do outro lado temos Georges Dumont (André Marcon), marido da protagonista. Ele vive atormentado emocional e fisicamente, tanto por não conseguir dizer a verdade quanto por não aguentar mais a voz de matraca da esposa. Distanciando-se pela incapacidade de ser verdadeiro, o marido acaba tendo um caso extraconjugal que funciona como válvula de escape da responsabilidade que, por mais ele adie, um dia terá que chegar. Georges é claramente um covarde. Dependente do dinheiro da esposa, ele não se mostra interesseiro, mas foge de forma desrespeitosa da raia em nome do sonho pueril de Marguerite.


Até o momento, a protagonista continha-se em apresentações mais particulares, com pessoas do seu círculo pessoal, que se divertiam com o show de horrores da senhora. Hipócritas de marca maior, eles louvam cruelmente aquele trem descarrilado em troca de diversão gratuita. É sempre bom ver alguém com tanto poder passar vergonha (sem nem ao menos saber), não é verdade? Foi assim que Lucien Beaumont (Sylvain Dieuaide), um jornalista picareta, vê uma chance de conseguir dinheiro. Ele escreve uma crítica rasgando elogios para a apresentação da baronesa, que, em puro êxtase, decide que vai se apresentar em um grande concerto público. Era o estopim que faltava, para o desespero do marido, que tenta impedi-la sem que ela saiba que, no fundo, ele tenta protegê-la de um vexame. Marguerite está disposta a deixar escorrer sua euforia devastadora pela música para todos, o que a faz inabalável, mesmo com as tentativas do marido de proibi-la. Ele chega a soar insensato, em vão diante da certeza da esposa.

Mas de todos os personagens, que possuem diversas camadas psicológicas e emocionais, o mais intrigante é Madelbos (Denis Mpunga), o mordomo. Ele, como Max Von Mayerling (Erich Von Stroheim), o mordomo da obra-prima “Crepúsculo dos Deuses” (1950), tenta tapar os buracos para manter a patroa fiel à ilusão em que vive. Ele recolhe todos os jornais publicados e esconde aqueles com críticas verdadeiras sobre os dotes vocais de Marguerite, tira fotos da patroa com roupas de ópera (o mais perto que ela pode chegar duma produção sem correr riscos) e sempre elogia suas apresentações, por mais tenebrosas que forem. O mordomo nutre uma admiração bastante ambígua por Marguerite, hora soando como uma paixão reprimida, hora como pura e completa pena.


O que todos possuem em comum é: ninguém é capaz de dizer à mulher o quão ruim é seu canto. Pensemos: a senhora é um amor de pessoa e tem como razão de viver a música. É melhor deixá-la viver nessa fantasia que sustenta sua vida e que pode, um dia, vir abaixo com uma crítica maldosa, ou deveriam sentar e ter uma conversa franca para conscientizar Marguerite? Sua voz não agride de fato, a não ser aos ouvidos, então eles devem continuar alimentando seu sonho, mesmo fadado ao fracasso? Por mais que essas dúvidas martelem na cabeça de todos (inclusive na do espectador), todos continuam empurrando com a barriga o sonho torto da mulher.

É extremamente cômico vê-los reagindo ao assassinato vocal de Marguerite por sabermos o que se passa em suas cabeças. São olhares de canto de olho, risinhos disfarçados e expressões de pura perplexidade daqueles que não sabem do pacto comum que, mesmo não sendo proferido, é aceito por todos (e consequentemente por nós). Uma das cenas mais emblemáticas desse pacto é quando Atos Pezzini (Michel Fau), cantor em decadência que é contratado para dar aulas de canto à baronesa, ouve Marguerite cantar pela primeira vez. Numa atuação fenomenal, o ator embarca numa montanha-russa silenciosa. Primeiro vem o espanto, já que ele não conhecia a reputação da senhora, que passa por expressões de desentendimento, como se aquilo fosse uma piada, até que entende o que está se passando: ele deve dançar conforme a música, efeito confirmado pelo mordomo com um simples olhar que grita “finja que ela é o próprio Mozart”.


Em termos de atuação, todo o elenco está brilhante, mas é a Marguerite de Catherine Frot que domina a tela com sua doçura irrefutável. Em todos os momentos a atriz está genial, demandando as mais diferentes emoções do espectador com facilidade, o que lhe rendeu o César Award, o Oscar francês, de “Melhor Atriz”. Além desse, o filme ainda recebeu os prêmios de "Melhor Figurino" e "Melhor Direção de Arte" pelo acabamento visual estonteante que recriou o início do século passado com luxúria e afinco; além de "Melhor Som", pelas explosivas sequências musicais.

“Marguerite”, não satisfeito em nos colocar à força no meio do dilema principal, nos faz repensar diversas lições de vida. Sempre somos impulsionados a buscarmos os nossos sonhos, nunca desistirmos e nos dedicarmos que um dia eles se tornarão realidade. Mas se, assim como Marguerite, nada disso valer a pena por simplesmente não sermos bons nesse sonho? É bastante volátil o conceito de ser “bom” ou “ruim”, entretanto, quando é absolutamente clara a nossa deficiência, é válido continuar na perseguição desse sonho, mesmo que nossas frustrações futuras possam nos destruir por completo?

São questões bastante intrigantes vistas pelo lado de fora, porque quando somos nós na pele de Marguerite, achamos piamente que somos ótimos naquilo que fazemos, principalmente quando ouvimos o que queremos. Quando nos pegamos, depois do filme, estamos duvidando daquilo que sempre nos consideramos bons, dos elogios que recebemos e do quão verdadeiras são essas críticas - podemos batizar de "Síndrome de Marguerite"? Vai ver todos os meus textos são terríveis e ninguém nunca teve coragem de me dizer, no passo que me acho tão bom quanto a belíssima voz na cabeça de Marguerite. Será?

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