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Crítica: "Stonewall: Onde o Orgulho Começou" tenta representar, mas higieniza e marginaliza o movimento LGBT

Cheios de boas intenções, "Stonewall" acaba atrapalhando a luta LGBT com seus focos e prova que de boas intenções o inferno está cheio

Você talvez não tenha assistido “Stonewall: Onde o Orgulho Começou”, mas já compartilhe da áurea negativa que habita a produção. Desde as críticas penosas espalhadas pelos sites de cinema mundo afora até seu famigerado trailer, o filme nem viu a luz do sol e já era repudiado.

O que por si só é um efeito muito problemático. Tanto para a obra em si, afinal, entrarmos numa onda de ódio sem nem ao menos assistirmos ao filme é ilógico; até para o contexto que o filme está inserido, nossa realidade de lutas cada vez mais incisivas do meio LGBT.

Um aspecto bastante relevante nesse contexto, e que merece destaque para uma análise mais complexa do todo, é a quantidade de pessoas que não conhecem a história de Stonewall. Nos Estados Unidos os eventos são mais conhecidos, mas fora dele é grande o torcer de rosto ao citar o movimento. Mas afinal, o que foi Stonewall?

Numa breve abordagem histórica (foco no “breve”, você pode - e deve - se aprofundar melhor depois) a Revolta de Stonewall aconteceu em 1969 na Rua Christopher, Nova Iorque. Basicamente foi uma manifestação violenta de LGBTs contra a repressão da polícia, numa época bastante opressora para toda a classe LGBT (mesmo esta sigla não existindo à época). A revolta é o marco inicial para o movimento do orgulho contemporâneo.

Pois bem. O filme conta a história de Danny (Jeremy Irvine), um jovem branco, gay e classe média que é expulso de casa após seus pais (e a cidade inteira) descobrirem sua orientação sexual. Ele vai parar na Rua Christopher, onde conhece Ray (Jonny Beauchamp) um jovem latino afeminado que o inicia naquele caldeirão cultural tão diferente da sua pacata realidade. Paralelo a isso, Danny tenta entrar numa faculdade, mesmo com a reprovação absoluta do pai.

Imagem: Divulgação/Internet

O roteirista Jon Robin Baitz claramente fez uma extensa pesquisa sobre o contexto político-social da época, introduzindo logo de cara uma vasta gama de cores, expressões e pensamentos (para o bem ou para o mal). Após conhecer Ray, Danny é apresentado aos amigos do jovem, que vão desde gays negros com roupas “femininas” até hippies.

A narrativa não perde tempo e introduz diversos aspectos necessários para a composição de sentidos e mostra desde personagens se prostituindo até roubando. Gays eram considerados doentes mentais inaptos de conviverem em sociedade, um forte discurso médico que legitimava a marginalização, sendo automaticamente reprovados em vagas de emprego e sujeitos à uma sub-vida.

Além da pressão social, leis garantiam que esse grupo fosse ainda mais excluído. Duas delas são bastante abordadas no filme: gays eram proibidos de consumir bebidas alcoólicas e eram presos caso trajassem mais de três peças de roupa do gênero oposto ao seu biológico. Com a repressão e violência garantida, o grupo via-se encurralado na clandestinidade.

Imagem: Divulgação/Internet

É aqui que entra o Stonewall Inn, um bar mantido pela máfia onde gays, lésbicas, drag queens e transsexuais poderiam ter uma válvula de escape. O local, que seria palco da revolução, era um dos poucos que vendia bebida para LGBTs e permitia música e dança entre pessoas do mesmo sexo.

O longa-metragem costura aspectos ficcionais com reconstituições de eventos reais na sua narrativa, o que o caracteriza como um docudrama - os populares “baseados em fatos reais”. Danny e Ray, por exemplo, são personagens inventados, e contracenam com nomes como Marsha P. Johnson (interpretada por Otoja Abit), transativista negra que virou símbolo da Revolta de Stonewall.

Eis que chegamos ao cerne do grande problema de “Stonewall: Onde o Orgulho Começou”, transparecido em seu trailer. Se temos nomes reais e que representam minorias ainda mais massacradas historicamente, como a Marsha, por que colocar como protagonista um jovem branco, boa pinta, heteronormativo, com acesso à educação e que, atenção para este detalhe, não existiu?

Imagem: Divulgação/Internet

O diretor Roland Emmerich, homem branco e gay, disse em entrevistas após as discussões em torno do trailer bombardearem a internet, que seu filme foi feito também para “agradar heterossexuais”, e que estes se identificam com o protagonista. O quê?

É muito importante que tenhamos em mente o “objetivo” de toda e qualquer obra quando formos analisá-la. Qual é o objetivo de “Stonewall: Onde o Orgulho Começou”? Podemos citar três elementares: 1 entreter, 2 disseminar conhecimento histórico e 3 conscientizar sobre a luta LGBT.

Entendendo tais pontos, fica claro que é infundado assistir ao filme com o intuito de apontar diferenças históricas, pois ele não é um documentário, ele não está interessado em reproduzir fielmente todos os eventos da Revolta, mesmo passeando em vários aspectos daquele contexto em sua duração de mais de duas horas, desde pequenos, como a morte da atriz Judy Garland, até mais expressivos, como os desentendimentos entre a polícia e a máfia do Stonewall Inn.

Imagem: Divulgação/Internet

Com o objetivo de entreter e conscientizar sobre a importância do movimento LGBT, o filme, obviamente, quer agradar todo mundo, não importando sua cor, orientação sexual e identidade de gênero, afinal, essa conscientização dentro do contexto hétero-cis é bastante urgente, todavia, o público principal da obra é a classe LGBT, e soa bastante complicado quando o símbolo do filme, seu protagonista, não dialoga com camadas que estão cada vez mais em busca de voz - camadas estas que estão ativas na revolta histórica.

Além do mais, usar como desculpa para a heteronormatização do protagonista um agrado para o público heterossexual? Alguém já viu um romance hétero com um protagonista afeminado para agradar o público gay? Quando a preocupação com este público é de alguma forma diminuída em prol do público que já é representado em quase todas as obras, ainda mais as obras hollywoodianas, onde “Stonewall: Onde o Orgulho Começou” está inserido, há algo de errado.

Norte-americanos adoram um mito histórico; reflexo disso é a quantidade de filmes sobre esses mitos em seu cinema. Não há consenso entre historiadores sobre quem de fato iniciou a Revolta de Stonewall, entretanto, formou-se um mito sobre o primeiro objeto jogado, no caso do filme, um tijolo. Até mesmo Marsha é atribuída a esse momento, com ela jogando um tijolo e iniciando toda a movimentação.

Imagem: Divulgação/Internet

Este momento talvez seja o mais importante de todo o longa. Há uma forte construção imagética no momento do tijolo, arremessado aqui por Danny. Há cortes específicos que mostram o personagem segurando o objeto, seu rosto apreensivo, outros personagens em volta tensos até que ele joga e grita “Poder Gay!”, que incendeia o grupo e começa a revolta.

Diversos teóricos de cinema já falaram: a construção cinematográfica tem um forte poder de discurso. Tudo que cabe dentro do ecrã fala, berra, grita. O que a cena específica quer nos dizer?

Ao colocar o tijolo na mão de um personagem - é sempre bom repetir, branco, heteronormativo, universitário e inventado - o filme associa o mito ao personagem. Ali, Danny é um herói, um símbolo de Stonewall, aquele que sofreu na mão da sociedade preconceituosa e iniciou um evento que viria mudar a história.

Imagem: Divulgação/Internet

Como o filme não tem obrigação de retratar de forma 100% fidedigna os fatos e, como já mostrado, utiliza-se de tramas ficcionais para tecer sua trama, poderia muito bem ter colocado o tijolo com Marsha P. Johnson, um símbolo real. O tijolo deixa de ser um mero objeto para carregar um poder ideológico, e tamanho poder nas mãos de Danny embranquece, heteronormatiza e invisibiliza. Como pode o filme criar um símbolo sobre alguém que nem sequer existiu?

Existiram gays brancos e heteronormativos na Revolta de Stonewall? Sim, claro que sim, mas o cinema e toda forma de expressão midiatizada possui um elemento chamado “representatividade”, que é, de forma bem básica, o senso social formado pelas mídias do “outro”, daquele que não compartilha da nossa realidade e identidade. Brancos e heterossexuais já são muitíssimo bem representados nas plataformas midiáticas, então por que não protagonizar uma minoria que fez tanto para a revolta em específico e que não tem espaço?

“Stonewall: Onde o Orgulho Começou” sofre do mesmo mal que “A Garota Dinamarquesa”: é uma obra muito bem intencionada, no entanto jamais consegue soar relevante dentro da luta que propõe. Mesmo como todo o estudo sobre os eventos, toda a preparação visual para as expressões de gênero e toda a reconstituição física daquela época, o longa pode cair no esquecimento por levantar uma bandeira torta que, felizmente, gera descontentamento tanto por parte da classe que se propõe a representar quanto pelo puro e elementar estado de cinema, em mais uma história “coming-to-age” clichê e óbvia. Danny consegue, por fim, apoio de (parte) da família, cheia de sorrisos. É o açucarado final feliz do rostinho bonito que sempre teve tantas oportunidades a mais que todos os outros. O público pode voltar para casa tranquilo, o movimento LGBT está salvo.


Obs.: a análise do filme gerou um artigo científico intitulado
"As Garotas de Stonewall: analise de história e gênero a partir do filme
'Stonewall: Onde o Orgulho Começou'", escrito por mim e Julio Eduardo Alvarenga.
disqus, portalitpop-1

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