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Editorial: Fernando Holiday e como a direita quer te vender um conservadorismo pop

Por Ben-Hur Bernard

Nós sempre produzimos heróis. Desde a Antiguidade sempre houve um sistema dinâmico que não só os produzia, mas os lançava e os tornava referência de seus tempos; porém os melhores heróis estavam predestinados a atravessarem essa barreira cronológica. Hércules é um dos principais exemplos, mesmo que mitológico. O semideus que se esforçou bastante para acabar com a hidra de 7 cabeças, ou com o cão Cérbero teve seus grandes feitos celebrados ao longo da história: em seu tempo, tinha os trovadores e estátuas; hoje, os filmes de animação da Disney.

E a criação do herói está justamente ai, na celebração de seus feitos, o problema é que cada tempo tem sua demanda pelo o que merece ser celebrado. Nos tempos de Hércules, nada poderia ser mais celebrado que sua força física, mas ao longo dos séculos, o prestígio foi mudando de figura. Da força física, para a complexidade humana, para os defeitos inerentes a todos os seres humanos, para o herói que também tem medos, para o anti-herói e agora, em tempos de textão no Facebook, o herói é aquele que sofre. É interessante pensar que todas essas características fazem parte de todos os heróis, assim como fazem parte de todas as pessoas. Mas o que torna uma pessoa comum em herói de seu tempo é justamente o poder que essa pessoa tem de se relacionar com o seu tempo, ou seja, de celebrar aquilo que está em voga (ou em Vogue) na sua atualidade.

Se Hércules fosse um herói do século 20 ou 21, seus músculos teriam menos destaque que suas dificuldades na adolescência. Na verdade, o spin off de TV (1998) que a Disney produziu após o sucesso do filme (1997) teve como foco justamente a fase teen do herói, onde ele era o garoto desengonçado, com suas angústias e dúvidas sobre seu destino. Mas se herói hoje é aquele que sofre, que é oprimido, que é alvo de bullying, esse herói não é branco, nem cisgênero-heterossexual, nem rico, nem homem. E esse fenômeno é global, hoje.

No Brasil, porém, esse novo cenário é um grande entrave, porque os heróis precisam continuar sendo produzidos, mas aqui, mesmo os oprimidos não se veem como tais. Ninguém quer ser negro, daí os eufemismos como “moreno” e as dezenas de termos que criaram para não expor a negritude, como “pardo”; ninguém quer ser homossexual, então se cria uma diferenciação ridícula entre o que é ser “gay” e o que é ser “bicha”, ou “lésbica” e “sapatão”; ninguém quer ser considerado pobre e jura que só por ter uma smart TV, ou um carro, ou uma casa própria financiada pelo Minha Casa, Minha Vida já o diferencia da massa de mortos de fome televisionada pela TV Globo nos anos 1990. E mais: por tudo isso, ninguém se identifica como esquerda, porque sê-lo é sinônimo de se assumir como oprimido, então as pessoas se identificam como direita. Assim, os direitos que a gente conquista não são direitos, são privilégios, afinal, rico não precisa lutar por direitos, rico trabalhou muito pra ter o que tem por mérito, então eu como uma pessoa que gozo de saúde e inteligência, se eu trabalhar muito, também vou conseguir. Não preciso ir na rua levantar bandeira.

Mas os heróis precisam continuar sendo produzidos... Qual a solução?

Uma das soluções encontradas instintivamente pelas pessoas que agora se veem perdidas nesse cenário é a tentativa de se lançar ao mundo também como uma pessoa que sofre. “Mas como uma pessoa branca, cisgênero, heterossexual e financeiramente confortável pode sofrer no Brasil?”. É muito simples: “Quando eu era pequeno, me chamavam de branquelo azedo na escola”; “Entre os meus amigos de faculdade, eu era o único evangélico e eles o tempo todo botavam a minha fé a prova”; “Me sinto constrangido de dizer que sou heterossexual, porque eu gosto de ser hétero, mas as pessoas dizem que por isso sou homofóbico”; “Nunca pude brincar na rua, livre, como os filhos da minha empregada – que por sinal não podia cuidar deles, porque ela cuidava de mim, acumulando duas funções, a de empregada e de babá – então eu cresci nesse condomínio murado e não tive uma infância plena”. 

Sim. Não é a toa o surgimento de termos como cristofóbico, magrofóbico, racista reverso, heterofóbico e não me surpreenderia o surgimento de outros como ricofóbico, direitofóbico, se é que já não cunharam. É que se você surge no Facebook contando vantagem de como você conseguiu aquela vaga maravilhosa naquele concurso federal concorridíssimo, ou seja, almejando a celebração heroica pública, ninguém se importa (posso até ouvir a Duny de Girls In The House dizendo isso). Quer ser herói? Tem que mostrar o quanto foi sofrido conseguir essa vaga e aproveitar pra relembrar como naquele verão de 2005 você foi ridicularizado porque você é tão branquinho, que você não bronzeava, só se queimava. E continua se queimando, né colega?


Mas só a criação de novas opressões não é o bastante, é preciso descreditar as que já existem legitimamente para que os heróis continuem sendo os mesmos privilegiados de sempre. Assim, com 48 mil votos, não é surpresa a eleição de Fernando Holiday, membro do Movimento Brasil Livre (MBL) e filiado ao Democratas (DEM) para a Câmara Municipal de São Paulo. Holiday é negro, periférico, tem apenas 20 anos e é o primeiro gay assumido a ser vereador da cidade. É de direita, liberal, anti-PT, contra as cotas para negros e contra qualquer bandeira de luta LGBT. Sua primeira fala como vereador eleito, inclusive, é pela extinção das secretarias LGBT e de Igualdade Racial em São Paulo.

Como negro, Holiday não é só contra as cotas, ele é contra inclusive ao dia da Consciência Negra (20 de novembro), pois julga não haver “necessidade ou eficiência”, principalmente porque a data foi escolhida em homenagem a Zumbi dos Palmares, morto em 1695. Para Holiday, Zumbi foi um assassino que inclusive tinha escravos

As acusações são de uma desonestidade absurda, pois escravos brancos sempre existiram na Europa, escravos negros sempre existiram na África e escravos indígenas ou pré-Americanos sempre existiram na América, sejam porque eram prisioneiros de guerra, ou por serem população de povoados conquistados. Mas escravidão globalizada de negros se deu também pela desumanização do negro, a própria Igreja na época anunciava que negros não tinham alma e, portanto, não eram humanos e que, assim, deveriam ser escravizados. 

A ausência de contextualização no discurso do vereador não só empobrece o debate, como é má intencionada por si só. E não há muita coerência em se dizer contra a escravidão e se filiar justamente ao partido de Ronaldo Caiado, cuja família se encontra na lista do Ministério do Trabalho e Emprego como sendo beneficiada por trabalho escravo.

E claro que ele não poderia falar tudo isso sem apontar que a luta do Movimento Negro no Brasil é vitimismo e que tudo isso se resolveria com a aplicação da meritocracia.

A escolha pelo DEM como seu partido também tem muito a dizer sobre como Holiday detesta o discurso de vítima da comunidade LGBT, afinal é de Carlos Apolinário, vereador pelo DEM/SP, o projeto de lei que cria o Dia do Orgulho Hetero na cidade. Ainda em 2015, quando se desenvolvia a narrativa midiática do Impeachment de Dilma, Holiday subiu ao púlpito da Comissão Geral sobre políticas públicas para a juventude e se autodeclarou como negro, pobre e homossexual e que isso não fazia dele vítima. Que o caminho para se vencer na vida é o mérito. Não precisamos aqui dizer o quão errado é o discurso meritocrático (precisamos?), não precisamos discutir que o mérito no Brasil não alcança quem muito trabalha, mas sim quem já possui privilégios. 


É muito ingenuidade, ou muita má fé de Holiday achar que se assumir gay sem se alinhar à esquerda o faz uma pessoa aceita, que ele não deve levantar bandeiras em prol dos direitos LGBT, pois isso é vitimismo, ou seja, uma distração que o impede de conquistar seus objetivos. Que basta batalhar pra chegar lá. Holiday está chegando lá (onde quer que isso seja) aos 20 anos, mas uma pessoa trans no Brasil vive em média até os 30. É necessário dizer, berrar, escancarar que a expectativa de vida de uma pessoa trans é essa porque ELA É PESSOA TRANS. Levantar bandeira para uma pessoa trans não é uma questão de mimimi, é uma questão de vida ou morte. Mas Holiday acha que uma secretaria para a comunidade, que inclusive ele faz parte (?) é um gasto desnecessário. Talvez para Holiday, ele pense assim: “Travesti, quer vencer na vida? Vá trabalhar”. Me pergunto onde ele acha que as travestis vão trabalhar pra poder “vencer na vida”.

O grande problema de criar todo esse discurso anti-LGBT e anti-negro, não sendo parte de nenhuma dessas comunidades, é que dificilmente um herói será celebrado se ele crer nessas ideologias. Mas se você fizer parte dessas comunidades, quem poderá dizer que você está errado? Se você for na página de Holiday no Facebook, verá uma porção de comentários de pessoas que não são negras ou LGBTs, mas que se escondem atrás de Holiday para dizer “Ta vendo? Não sou racista ou LGBTfóbico, eu até apoio esse candidato a vereador aqui, olha”.

Mas não basta sofrer sem sofrer para ser herói. Num mundo onde cada vez mais a internet nos permite a visibilidade, emergir como herói é um caso de sorte, talvez mais sorte que talento. Mas nada que o dinheiro e um bom marketing não possam comprar, afinal, espaço no Facebook todos podem ter, mas visibilidade, ai você tem que comprar com tio Mark. E ai que surge o MBL na vida de Holiday, ou surge o Holiday na vida do MBL, que para a nossa triste surpresa tem como co-fundador Pedro D'Eyrot, do Bonde do Rolê. Nas palavras de Pedro, em entrevista à Folha, “Partimos da tese de que faltava estética e apelo para difundir na sociedade uma visão de mundo mais liberal. [...] Era preciso – com o perdão da ironia – revolucionar o liberalismo.”. 

Vale destacar que Holiday surge na internet aos 18, em janeiro de 2015, com um vídeo pra lá de “excêntrico” sobre como as cotas são racistas. Um vídeo até bem editado pra quem é apenas um adolescente independente e “sem partido”, pronto pra ser viral. Isso, dias antes do protesto contra Dilma. Ai no ano seguinte ele emerge como um dos candidatos a vereador mais votados da cidade de SP. Precisamos falar mais alguma coisa?


Você certamente deve ter um conhecido que detestava as roupas extravagantes da Lady Gaga, mas que quando a viu no Oscar cantando as canções de A Noviça Rebelde, ele disse “Ah, agora sim ela está se mostrando uma cantora de verdade”. Mas se você perguntar quantos álbuns da Gaga ele já ouviu, ele dirá “Poker Face? O que é isso?”. Basicamente o MBL surge numa mesma proposta, só que ao contrário: ao invés de eles irem pro jazz, eles foram pro pop. E pop no sentindo amplo da palavra: popular e jovem.

E enquanto a esquerda se fragmenta em cubinhos que se dissolvem no ar, a direita não tem pudores nenhum de se apropriar de qualquer discurso ou estética pra se manter unida. Se pra ser herói agora você tem que ter sofrido bullying, eles produzirão um branco riquinho que foi oprimido; se é preciso dialogar com o funk e o rap, eles terão sua própria Iggy ou Eminem; se agora precisa ir às ruas com palavras de ordem, eles colocarão modelos magras e brancas na capa de uma revista de moda simulando um protesto. Tudo isso para que a produção de heróis não deixe de ser dominada pelos mesmos agentes da elite de sempre, porque se tem uma coisa que eles não sabem nessa vida é o que significa ser oprimido, mas não tem importância, eles podem pagar por isso.

Mas que nem eu, nem você, nem o próprio Holiday se enganem, ele não é o novo herói. Não podemos aqui dizer que ele está sendo manipulado pelos conservadores, ou usar de termos ofensivos como “capitão do mato” para apontar Holiday como um pobre coitado ignorante. Na verdade ele pode muito bem enxergar as grandes vantagens que ele tem com tudo isso, talvez ele não seja o ingênuo que nós gostaríamos que ele fosse. E isso só piora a situação. Mas que não nos enganemos: Holiday não é o novo herói, ele é apenas um parafuso na maquinaria que produz heróis em massa no mundo contemporâneo. Ele é somente uma peça que serve para tirar a voz dos pretos, gays e pobres que poderiam emergir como heróis entre seus iguais e de suas comunidades; e pra deslegitimar os discursos de opressão que esses mesmos pretos, gays e pobres poderiam apontar. 

Os heróis, enquanto continuarem a ser produzidos por quem já detêm o poder, continuarão a ser os Hércules: brancos, héteros, cisgêneros, filhos de deuses e dotados de poderes apenas por nascer. Com tudo isso, só sinto que Fernando Souza Bispo tenha se batizado de Fernando Holiday, pois agora ouvir "Holiday" da Madonna não será uma completa celebração.

***

Ben-Hur Bernard é jornalista e mestre em Estudos da Mídia; consumidor assíduo de cultura pop, devoto de M.I.A., tem Madonna e Britney como gurus e temente a Beyoncé. Ajuda a administrar o grupo Smart Pop e escreve também no Questões Milimétricas.
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