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Review: sem nenhum alter ego (ou com vários deles), conheça a verdadeira "Beyoncé"!


Foi como chegar em casa para o almoço, esperando aquele omelete queimado, mas ao abrir as panelas, você encontrou uma lasanha. Você estava dormindo, preparando-se para mais um dia comum. Daí a Beyoncé decidiu lançar seu novo álbum de inéditas sem avisar ninguém. E VRÁ, a internet parou.

É lógico que não podemos ignorar o principal e tão comentado esquema de  divulgação do lançamento do novo álbum de um dos nomes mais poderosos da música, Beyoncé. Já lemos várias teorias que explicam a estratégia adotada pela equipe da cantora; a surpresa caberia como uma justificativa coerente para uma possível vendagem mediana do disco; um ato genial de marketing as avessas, indo contra a maré e fazendo o oposto do que outras grandes estrelas do pop arquitetaram. Seja qual for o motivo, os resultados foram extremamente positivos.

Devo ressaltar o melhor ganho deste tipo de promoção: Beyoncé passou por cima dos críticos e, estrategicamente ou não, vendeu a imagem de uma cantora preocupada apenas com a satisfação de seus fãs. Ponto para a Mrs. Carter, mais uma vez! E apesar da crítica ter sido deixada de lado, isso não impediu a chuva de elogios que o trabalho recebeu.

Antes de avaliar as canções, deixamos claro que se você espera algo com uma boa dose pop comercial como em "I Am... Sasha Fierce", "B'Day" ou "Dangerously In Love", talvez venha a se decepcionar. "Beyoncé" é ainda um tanto experimental e segue o estilo introduzido em "4". Ou seja, pode ser maçante caso você não esteja aberto a apreciar os vocais intensos de Beyoncé em produções quase sempre voltadas ao R&B e ao urban de Jay-Z, sem medo, porém com algumas ressalvas. Então, se você espera ver a diva americana dançando com as faixas de seu homônimo, não fique tão animado. Porém, quem quiser arriscar uma maior conexão com o projeto, todas as faixas possuem clipes e que, sutilmente, estão interligados e funcionam como ponte entre os momentos que Beyoncé traz à tona ao longo do disco.



Abrindo o trabalho, temos "Pretty Hurts", uma poderosa balada de Sia Furler, e Beyoncé sabe disso. Não é só mais um hino contra os padrões de beleza, mas também uma crítica às condutas fúteis e superficiais de uma sociedade construída sob alicerces frágeis e desconexos. Uma produção que apresenta toda sua explosão no refrão e que deve funcionar muito bem como single em um álbum sem grandes pérolas comerciais. Em "Haunted", a cantora faz seu rap e conta como é assombrada pela realidade do mundo e retrata, ao meu ver, a dura relação com sua gravadora e a busca desesperada por hits. E no final das contas, a sua própria assombração é baseada na busca pela perfeição ou aceitação, numa dialética entre o padrão daquilo que é considerado perfeito e a verdadeira construção da realidade, abarcando erros e acertos, e isso fica evidente no instrumental ora agressivo, ora vulnerável. No vídeo de "Ghost" (prelúdio de "Haunted") ela repete "9 to 5 just to stay alive" como se fosse uma oração, uma alienação. Temos então, nitidamente, uma critica à ordem mórbida e passiva que rege o meio social e também ao freak show que alimenta atualmente o cenário musical. 



"Drunk In Love", parceria com Jay-Z, é introduzida com uma mistura árabe que transborda sensualidade, mostrando toda a intimidade do casal. Com uma vibe mais radio friendly, ficamos bebâdos com a fonte de amor de Beyoncé e, logo, o refrão torna-se um tanto consistente e agradável. A faixa cumpre brilhantemente seu papel, e assim como quando estamos bebendo, depois de algumas doses, já estamos sorrindo à toa devido aos efeitos produzidos, neste caso pela canção dos Carters. Chega a vez então de "Blow" com toda sua energia vintage. Arrisco dizer que essa é a "Love On The Top" deste trabalho, com um detalhe: o sexo aqui é explícito. Queen B resolveu expor toda sua sexualidade e conta pra gente o quanto é insaciável e obscena, sem nenhum pudor. O clima eleva a putaria à um nível classudo, mas não deixa de ser o lado mais pervertido da cantora, e a faixa funciona como uma ponte da produção anterior.


Uma coisa da qual não podemos reclamar é a linearidade sonora de "Beyoncé": mais um R&B que te faz implorar por aquela Single Ladie de anos atrás. A lenta e sexy "No Angel" é uma declaração de uma mulher confiante, realista e que abusa de sua sexualidade sem medo. Depois desse ritmo monótono, parece que a cantora percebeu que um pouco de energia não faria mal. Então temos a mistura urban-guetto-eletrônica em "Partition", uma batida experimental e viciante, em que Beyoncé grita seu apetite sexual e explora fantasias afirmando que uma mulher pode ter sede de sexo, seja qual for.


E como o sexo é tema central para Beyoncé em seu álbum intimista, ela abre "Jealous" com uma imagem provocativa para assumir seu papel de mulher ciumenta e pedir que uma promessa de fidelidade seja renovada. O ritmo é leve e extremamente agradável, trazendo novos ares ao álbum e nos dando alguns minutos para curtir uma faixa fora de toda a agressividade do disco. Com a sensação de já ouvi isso antes, Beyoncé apresenta "Rocket", mais uma faixa cheia de sentimentalismo mascarado de puro sexo, com figuras de linguagem para ilustrar cenas eróticas, com uma malícia suculenta e irresistível.

Na romântica "Mine", com participação do colega Drake, Queen B conta que é possessiva e nos presenteia com mais alguns minutos carregados de batidas calmas e um tanto eróticas, que acompanham o ritmo lento do álbum. O sentimento de possessão de Bey ainda é evidenciada no vídeo da faixa, no qual vemos o adágio de "o amor é cego" refletindo um egoísmo intrínseco e referindo-se à obra de René Magritte, "Os Amantes", de 1928. Afinal, amor é realmente cego ou não enxerga pelas amarras das relações, nas quais  escondemos nosso íntimo na profundidade por detrás das aparências? Até onde podemos clamar algo que seja nosso, principalmente com todas as inseguranças? Então só nos resta pedir (seja um pedido direto ou aos céus, como denuncia a referência à Pietá, de Michelangelo, no vídeo), e é isso que Beyoncé faz com muita emoção.



E se Bey soube emocionar, o ápice desse sentimento é apresentado em uma das melhores faixas do álbum: "XO". Você pode interpretá-la como um ato delicado e cheio de romance, mas talvez a composição seja um alerta: ame antes que seja tarde demais, ame com intensidade, afinal, um dia tudo pode acabar. Então, renda-se ao amor enquanto há tempo, antes que as luzes se apaguem... e aproveite cada momento! Nesta faixa, a cantora usou um trecho do áudio gravado após o acidente do ônibus espacial Challenger, ocorrido em janeiro de 1986, no qual os sete tripulantes morreram após a aeronave explodir e se desintegrar no ar quando lançada. O aúdio trouxe polêmica, mas Queen B disse que teve a intenção de ajudar a curar a dor daqueles que perderam entes queridos na tragédia e para nos lembrar que coisas imprevisíveis sempre acontecem.


E a polêmica continua em "***Flawless", que contém sample de um discurso da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, pro TED Talks, escritora feminista de destaque internacional. Mas seria a canção um verdadeiro hino feminista? Beyoncé é dona de sua própria sexualidade e pode usá-la sem medo ou estaria incentivando o uso do sexo como arma de manipulação, como uma espécia de instrumento de troca pelo poder? O debate é válido e não deixa de colocar o girl power em evidência. Acalmando os ânimos, ouvimos a sofisticada e linear "Superpower", ao lado de Frank Ocean. Sem um grande momento (quando a faixa cresce para um refrão, por exemplo), a canção é gostosa, mas poderia ser utilizada como interlude facilmente.

Depois da parceria com Ocean, mais um grande momento de Beyoncé, uma grandiosa balada que fala por si só e destaca todo o potencial e a emoção que a voz da interprete transmite com naturalidade. "Heaven" é uma despedida singela que chega a arrepiar, como uma prece crua e conformada. Nem parece que estamos acompanhando um disco tão agressivo e sexual, ou talvez, por ser tão pessoal, seja apenas mais um lado que estamos conhecendo de Bey, e esse é o momento em que ela fala sobre a morte e nos remete ao aborto espontâneo que teve antes de engravidar de Blue Ivy. E para fechar o disco, ela usa o tema da maternidade para adoçar o projeto, nos apresentando sua relação com "Blue". A conexão entre mãe e filha atinge o público com força e de forma instantânea, criando um instante de êxtase em "Beyoncé". (E não vamos esquecer que o vídeo foi filmado no Brasil, com cenas simples que retraram uma verdade tão singela, pura e crua, que talvez traduza grandiosamente o sentimento maternal da cantora.)

Resumindo:
Sério, cadê a animação, Beyoncé? Sem tirar o brilhantismo da obra, na maioria das faixas, consigo imaginar aquelas festas chiques, um tanto desanimadas, em que as pessoas comem petiscos que nem conhecem e depois bebem  para poder ter alguma diversão. Isso não é ruim, porque quando você começa a curtir e acompanha o ritmo das coisas, a energia é única e a satisfação é garantida. Em "Beyoncé", tudo é heterogêneo, muito introspectivo e expressivo. Um álbum pessoal, intimista e que não foi feito para rádios e que pode decepcionar os fãs de seus trabalhos anteriores, os adoradores do pop ou das tendências do mainstream. Mas anima quem deseja conhecer os sentimentos de uma Beyoncé verdadeira, que lançou um álbum para que seus fãs a conheçam melhor e entendam as várias faces que compõe um das figuras mais importantes da música atual. Não é uma proposta simples, é um convite genial que pode ou não atingir o público, sendo variável, pois depende da interpretação, das experiências e dos anseios de cada ouvinte. E é inegável a ousadia da estrela em propor um trabalho que tange a arte além da música e contextualiza sentimentos, crenças e sua verdade, seja por ritmos, composições ou vídeos. Beyoncé se desligou de qualquer alter ego, ou talvez tenha unido todos eles em um único álbum, afinal, cada personagem de sua carreira tem um pouco da verdadeira Mrs. Carter.
disqus, portalitpop-1

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