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Crítica: na batalha do homem contra a natureza, quem ganha é o espectador com "O Regresso"

"O Regresso" é muito mais que aquele filme que finalmente deu o Oscar do Leonardo DiCaprio, é uma experiência sensorial riquíssima
Alejandro G. Iñárritu continua sua trajetória de dominação mundial. Em 2015 ele voltou com “Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância”, um virtuoso filme sobre as loucuras de um decadente ator que tenta de tudo para reaver o sucesso. No Oscar, “Birdman” foi indicado a nove categorias – o maior da noite, vencendo quatro: “Melhor Fotografia”, “Melhor Roteiro Original”, “Melhor Direção” e “Melhor Filme”.

Então que na 88ª edição do prêmio temos novamente Iñarritu disparando nas categorias. “O Regresso” (The Revenant) conseguiu impressionantes 12 indicações, com o diretor tendo pelo segundo ano consecutivo o maior montante de indicações.

“O Regresso” é baseado na história de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio), um caçador de peles do século XIX que, durante uma expedição, é atacado por um urso e abandonado pelos seus colegas. Ele então passará pelas provações da natureza para conseguir sobreviver e se vingar de John Fitzgerald (Tom Hardy), companheiro que matou seu filho.

Aqui Iñarritu demonstra sua versatilidade. “O Regresso” não se parece com nenhum dos seus filmes anteriores, e fica ainda mais distante do ritmo frenético de “Birdman”. Logo nos primeiros minutos o diretor entrega o tom épico que perdurará pela projeção. O grupo de caçadores é surpreendido por indígenas, orquestrando uma batalha primorosa num grande plano sequência que impressiona pela riqueza de detalhes. Qualquer lugar do quadro há movimentação, há vida e há morte.


O desenvolvimento dos personagens é primordial para que entendamos os conflitos daquela situação, que por sua vez acarretarão nos conflitos seguintes. Enquanto Glass demonstra uma firmeza paterna e um amor muito forte pela sua misteriosa esposa, sendo um verdadeiro líder a ser seguido, Fitzgerald é o perfeito contraponto. Seu sotaque carregadíssimo praticamente impede a compreensão, soando ríspido e inconsequente, principalmente quando se encontra com Glass. Pouco a pouco vamos delimitando suas personalidades, cada vez mais complexas, o que nos conecta com a história facilmente.

O meio modifica o indivíduo ao máximo nas belíssimas paisagens de “O Regresso”. Todo filmado à luz natural, a fotografia de Emmanuel Lubezki é uma obra-prima, com todas as cenas sendo verdadeiras pinturas. O seu terceiro Oscar (seguido!) parece certo, e é nada menos que correto. Todo o trabalho visual transmite a precariedade daquela realidade, que derruba os mais fracos e bate nos mais fortes. São longos planos da superfície coberta de gelo, que constrói um verdadeiro inferno branco, atormentando até o espectador. Invadindo as terras indígenas, os “homens brancos” buscam as peles para poder sobreviver, o que gera o plano de fundo da história.


Aqui não existem vilões ou mocinhos quando se trata desse plano de fundo, o genocídio indígena americano. Como o longa é passado pelo ponto de vista dos caçadores, os ataques indígenas poderiam parecer gratuitos, mas felizmente o roteiro se dá ao trabalho de contextualizar o lado dos indígenas, dando voz e razão para todo aquele embate. É a luta pela sobrevivência em tempos e locais tão difíceis.

E os difíceis locais do filme são lugares reais – não há cenas em estúdio. Toda a promoção do longa fez questão de deixar claríssimo as inúmeras dificuldades que houveram durantes as filmagens, feitas nos Estados Unidos, Canadá e Argentina. DiCaprio disse em várias entrevistas que "30 ou 40 sequências" foram as "mais difíceis" de toda a sua carreira, tendo entrado em rios congelantes, dormido com carcaça de animais e quase tendo hipotermia. Isso, claro, é um impulso gigante para a campanha ao Oscar – não esqueçamos que a premiação é uma eleição, mas, mesmo possuindo o intuito de vencer prêmios, essa pretensão é bastante justificada pela realização do filme.


DiCaprio está avassaladoramente incrível no papel principal, entregando-se de corpo e alma para transbordar as dificuldades do personagem – e finalmente deve render seu primeiro Oscar. E, com muita felicidade, Hardy foi lembrado em “Ator Coadjuvante”, podendo levar com muito louvor pela atuação brilhante, talvez a melhor de toda sua carreira – ele faz aqui tudo o que não fez em “Mad Max: Estrada da Fúria”. A sintonia paradoxal dos dois é o que move o longa, que, além de um épico sobre sobrevivência, é puramente uma história de vingança.

E muito se fala sobre a cena do urso. Também pudera. Toda a sequência é escandalosamente incrível, feita com requintes de brutalidade sem precedentes. Ficamos grudados na cadeira enquanto o – agora – pequeno DiCaprio luta contra aquele monstro enorme. Sem piedade, o ator é jogado de um lado para o outro, nos deixando boquiabertos pela violência sem pudor. São minutos que congelam na tela, jorrando aflição, dor e medo na cara do espectador. Uma das melhores sequências do ano.


Mesmo com doses cavalares de adrenalina nesta cena, “O Regresso” é, antes de tudo, um filme contemplativo. Sua duração é robusta (156 minutos), recheada com muitos silêncios e paisagens intermináveis, que cria o contraponto entre a beleza da natureza com a selvageria dos homens. Há sim momentos bem arrastados, principalmente no seu miolo, porém é tudo em nome da contemplação da finitude humana. Somos grãos de areia em meio ao gigante ambiente hostil, frágeis demais para conseguirmos vencê-lo. O percurso de Glass da quase morte para a vingança é longo, cruel e lento, mas jamais banal.

Nas mãos de outro diretor, “O Regresso” poderia ser mais um filme de sobrevivência com aquele roteiro ordinário do embate “homem vs. natureza”. Mas, novamente, a mão pesada de Iñarritu, juntamente com sua competência, consegue criar um filme deslumbrante, inesquecível e poderoso. Ao mesmo tempo em que vemos a natureza engolindo os personagens, jogos jogados para suas intimidades, em diversos momentos onde Glass está tão próximo da câmera que sua respiração embaça a tela – fora a quebra máxima da quarta parede (1) no final, uma das mais belas do cinema recente. “O Regresso” é um espetáculo cru e sensorial e que comprova: não nos livraremos de Alejandro G. Iñárritu tão cedo. Ainda bem.

(1) A "quarta parede" é uma parede imaginária situada na frente da tela. "Quebrar" a quarta parede é olhar para a câmera, diretamente para o espectador.

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