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Crítica: "Lady Bird" alcança raro sucesso apesar de uma história clichê e batida

Um dos mais aclamados filmes da temporada se apropria de clichês para compor uma obra encantadora, honesta e cheia de performances incríveis
Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Atriz (Saoirse Ronan)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Laurie Metcalf)
- Melhor Roteiro Original

Crítica editada após os indicados ao Oscar 2018

"Lady Bird: A Hora de Voar" entrou para a histeria coletiva quando se tornou o filme mais bem avaliado da história do Rotten Tomatoes, com um perfeito score de 100% de aprovação ao ultrapassar "Toy Story 2" no número de críticas positivas. Apesar de o feito, olhando com praticidade, não dizer lá muita coisa - o sistema de pontuação do site é bastante dúbio, pois filmes com 100% muitas vezes possuem notas gerais bem mais baixas que outros sem a unanimidade -, era um filme dirigido por uma mulher a estar no topo, o que aí sim, seria um feito notável.

Porém a marca não durou tanto tempo assim: um crítico - e por ora, apenas ele - deu uma nota negativa ao filme, que detém 99% de aprovação até o presente momento. E ele mesmo fez questão de apontar: deu uma nota ruim para tirar os 100% do longa. Bem, prioridades. 

Mas cada qual com sua opinião, e a desnecessária caça às bruxas que foi gerada ao redor do tal crítico é um reflexo da tal histeria coletiva que abate filmes altamente aclamados: parece que se forma uma cúpula contra qualquer comentário que vá de encontro à tal obra, e vamos aos fatos: ninguém é obrigado a concordar. Porém não se preocupe, eu faço parte do grupo que aprovou "Lady Bird".


Lady Bird (Saoirse Ronan) é uma estudante do último ano do ensino médio. Seu real nome é Christine McPherson, mas ela rejeita ser chamada assim, pois possui autonomia o suficiente para criar "Lady Bird", um nome dado para ela por ela mesma. Ela vem de uma família de classe média baixa e possui um conturbado relacionamento com sua mãe, Marion (a maravilhosa Laurie Metcalf), já pontuado logo nas primeiras cenas, quando, numa discussão dentro do carro, Lady Bird prefere de atirar para fora do veículo em movimento que continuar ouvindo os sermões da mãe.

A garota estuda numa escola católica e, quando não está ignorando os restritos costumes da instituição, anda pelas ruas dos bairros ricos de Sacramento com sua melhor amiga, Julie (Beanie Feldstein), imaginando qual daquelas suntuosas casas deveria ser a dela; ou folheia revistas de moda e se questiona o porquê de não parecer como as modelos das inúmeras páginas - ao contrário de outras meninas do colégio, que já nasceram perfeitas.


Provavelmente já deve estar claro que a obra se trata de um coming-of-age, aqueles filmes de high school que mostram o crescimento de seus personagens e as tramoias que devem enfrentar para o amadurecimento. E "Lady Bird" não esconde isso: está escancarado que seu desejo é seguir os passos da protagonista e ver como ela se relaciona com essa fase tão complexa da vida, quando somos obrigados a tomar decisões que afetam toda a nossa existência quando nem ao menos sabemos quem somos de verdade.

A primeira grande - e talvez única - diferença do longa para um coming-of-age qualquer é a estrutura familiar dos McPherson, matriarcal. É Marion que controla as rédeas da casa, já que o marido, Larry (Tracy Letts), perdeu o emprego e possui uma personagem nada combatível: é ele que detém o lado emocional do relacionamento, sobrando para Marion o dever de dizer as verdades nuas e cruas para Lady Bird, que pede para a mãe comprar uma revista e é negada com a resposta "Só pessoas ricas leem revistas no banheiro, nós não somos pessoas ricas".


Lady Bird acaba vivendo uma vida dupla: as dificuldades econômicas em casa e uma ilusória vida mais bem sucedida na escola, criando mentiras sobre onde e como vive, que, com toda a obviedade, será desmascarada no decorrer da fita. Ela troca de amigos, de lugares e de comportamento para se encaixar num padrão que não é seu até ter uma epifania e ver que tudo aquilo vale nada.

À essa altura você já deve ter percebido que "Lady Bird" é um filme que conta nada de novo, certo? E é verdade. Quase nada na obra é inédito ou que não tenhamos visto milhares de vezes no cinema: auto-descobrimento, sexualidade, seu lugar no mundo, faculdade, amigos, festas, drogas etc. Um dos principais concorrentes de "Lady Bird" na temporada, "Me Chame Pelo Seu Nome", trata dos mesmos assuntos. O que então faz com que o longa seja tão amado? A forma como essa velha história foi contada. Greta Gerwig, roteirista e diretora do longa, usa sua própria vida como inspiração e se apropria de todos os clichês do gênero para subvertê-los e criar uma peça única à sua maneira.


É compreensível quem assistir ao filme e achar nada de mais pela exaustão do roteiro batido, que, com poucos pequenos cortes, poderia ser exibido na Sessão da Tarde sem problemas. Mas também é compreensível quem ceda ao charme da produção, a maior força da mesma. Saoirse Ronan, finalmente se encontrando como atriz, rege uma personagem extremamente cativante e de fácil apreço pelas sua entrega e as dualidades de sua personagem, ajudada pela construção imagética e de personalidade do roteiro, que a fazem ser excêntrica na medida certa: seus cabelos vermelhos mal pintados, suas unhas com esmaltes descascando, seu quarto colorido e abarrotado de pôsteres. Todo o universo particular da garota é uma delícia.

A vida da menina aspira a ser como um conto de fadas, com muita cor de rosa e o sonho do baile de formatura perfeito. Porém a princesa aqui não possui um castelo, nem príncipe encantado, nem sapato de cristal. Fazendo o contraponto perfeito da solar personalidade de Lady Bird temos sua fada madrinha, Marion. Laurie Metcalf, favorita ao Oscar de "Melhor Atriz Coadjuvante", já está acostumada a dar vida à mães difíceis - ela é a mãe do Sheldon em "The Big Bang Theory" -, e aqui encontra seu apogeu. Sua personagem é deveras complexa: devendo cuidar da casa, ela se vê com a responsabilidade de cuidar do marido desempregado e depressivo, dos filhos nada fáceis e da sua própria vida, dividida entre o papel de dona de casa e enfermeira com jornada dupla.


É latente que os rumos da vida de Marion não foram os que ela traçou para si - ela afirma que nunca imaginava que viveria naquela casa "do lado errado dos trilhos" pelo resto da sua vida. Sem soar como vilã - um acerto bem vindo do roteiro - a mãe possui forte carga emocional pelas extensas camadas de bagagem, exploradas de maneira incrível pelo texto em pequenos momentos - quando ela olha preocupada para a conta do supermercado ou questiona se Lady Bird precisa mesmo usar duas toalhas depois do banho.

E de grandes pequenos momentos o filme está cheio. Greta, que já demonstrou talento para a atuação nos ótimos "Frances Ha" (2012) e "Mulheres do Século 20" (2016), costura sua obra com uma paixão que exala da tela, e mostra seu domínio cinematográfico e criatividade para gerar bons personagens e situações. Em sua estreia solo da direção, Gerwig é a mulher a chegar mais próximo de colocar as mãos num Oscar de "Melhor Direção" desde Kathryn Bigelow, a única a conseguir o feito - por "Guerra Ao Terror" em 2009. Mesmo não sendo a favorita, o roteiro original de "Lady Bird" é uma perfeita união de drama e comédia que a Academia adora louvar com o Oscar.


E todo o aparato técnico do longa colabora com seu sucesso, desde a fotografia inspiradíssima, roubando takes lindos de Sacramento sem abrir mão de um pesado filtro; até a montagem, uma das melhores do ano, que consegue compor um ritmo acelerado e fazem os 93 minutos voarem tão alto quanto sua protagonista. A única falha notável é o final, abrupto em demasia e que ultrapassa o limite do piegas, mas irrisório diante de toda a doçura do filme, produção que coloca os pés da protagonista - e da plateia - no chão, no real, nas durezas do dia a dia.

É inevitável a sensação de familiaridade com toda a trama, todavia, além de esperarmos histórias novas, o cinema é fonte de renovação constante das histórias já contadas. O que Gerwig faz é tão difícil quanto bolar algo inédito: transformar em interessante, genuíno e sincero um produto repetido, sem cair no artificialismo. "Lady Bird: A Hora de Voar" pode não ser original, mas consegue ter força pela linda união das partes, num filme aconchegante sobre seres humanos reais que estão constantemente à procura de si mesmos - árdua tarefa que todos nós enfrentamos.

Você não acha que são a mesma coisa, "amor" e "atenção"?

disqus, portalitpop-1

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