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Crítica: com grande luta feminina, "Três Anúncios Para Um Crime" é o filme certo na hora certa

A caçada de uma mãe em busca do estuprador que matou a filha já tem cara de clássico - e discute o ódio na nossa sociedade
Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Atriz (Frances McDormand) *favorito*
- Melhor Ator Coadjuvante (Sam Rockwell) *favorito*
- Melhor Ator Coadjuvante (Woody Harrelson)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Montagem
- Melhor Trilha Sonora

Crítica editada após os indicados ao Oscar 2018
Atenção: a crítica contém spoilers.

Mildred Hayes (Frances McDormand) é uma mãe que, ao ver três outdoors abandonados, decide alugá-los. Neles ela escreve, respectivamente: "Estuprada enquanto é morta", "E ainda nem uma prisão?", "Como pode, Xerife Willoughby?". A mensagem aqui é curta e grossa; sete meses se passaram desde o assassinato de sua filha e até o momento ninguém foi minimamente ligado ao crime. O Xerife (Woody Harrelson) afirma que a polícia está fazendo seu trabalho, mas o DNA do culpado foi compatível com ninguém dentro dos sistemas. Para Mildred, isso é além de nada.

Sem perder tempo, "Três Anúncios Para Um Crime" (Three Billboards Outside Ebbing Missouri) já começa com seus três anúncios do título - e são esses meros objetos que vão desencadear toda a trama. A renovação dos esqueletos dos outdoors na feroz investida de Mildred atrairá a atenção do público - exatamente o que ela desejava -, e iniciará uma caça às bruxas. O problema é se estão caçando as bruxas corretas.


A polícia, como era de se esperar, fica em polvorosa. Jason Dixon (Sam Rockwell) é o mais revoltado com a instalação das "ameaças", principalmente depois que Mildred vai à televisão falar como "a polícia está ocupada demais torturando pessoas negras para se preocupar em resolver crimes reais" - o quote aqui é exato. Não demora até toda a cidade se revoltar junto - e é o padre da paróquia que vai até à casa de Mildred como porta-voz da população, mas ele é rapidamente enxotado da sala de estar. A mãe é irredutível, mesmo com os lamentos de Robbie, seu filho (Lucas Hedges), assombrado ao relembrar a morte da irmã todos os dias ao passar pelos outdoors.

O primeiro baque dado por "Três Anúncios" é, sem dúvida, a Mildred de Frances McDormand. A atriz é conhecida por criar incríveis personagens coadjuvantes - ela venceu o Oscar de "Melhor Atriz" por "Fargo: Uma Comédia de Erros" sendo que sua personagem só aparece na metade do filme - o que tecnicamente a qualificaria como coadjuvante. Dessa vez temos uma protagonista absoluta: Mildred não rouba, e sim assalta todas as cenas. Mesmo com forte competição - Sam Rockwell está incrivelmente insano - é impossível desgrudar os olhos da atuação brilhante de McDormand.


E o roteiro de Martin McDonagh, que também dirige, é o fomentador dessa performance. Há incontáveis camadas que potencializam a persona de sua protagonista. Mildred está presa no meio de uma sociedade altamente tóxica. Vindoura de um relacionamento abusivo, seu ex-marido a agredia física e verbalmente. As pessoas ao seu redor são violentamente racistas - uma cena emblemática é a do desprezo pelo homem negro à frente da delegacia que segundos depois se revela um xerife. Sua filha é arrancada de forma cruel e ela depende desses homens racistas e machistas para resolver o caso. Sete meses sentada esperando, a mãe não poderia mais ficar de braços cruzados, tendo que usar da criatividade para por um ponto final nesse trágico capítulo de sua vida.

É curioso notar como quase nenhum personagem fica do lado dela em relação aos outdoors. Mesmo ninguém desejando que o culpado não seja encontrado - abertamente, pelo menos -, é uma audácia Mildred decidir fazer algo. Mas por quê? Ora ora, que resposta mais simples: porque foi uma mulher que decidiu fazer esse algo.

Se fosse o pai da vítima, o mesmo que abusava de Mildred, fazendo exatamente a mesma coisa, a recepção teria sido completamente diferente. Uma mulher ousar não só clamar por justiça, como apontar o dedo para um homem, é um absurdo. Usando um trecho do discurso de Laura Dern no Globo de Ouro 2018, mulheres foram ensinadas a não reclamar, naturalização feita por uma cultura do silêncio, e Mildred joga tudo isso no lixo.


Ácida e dura como pedra, a personagem deixa ninguém vê-la suando - principalmente se esse alguém for um homem. Seja em momentos onde ela manda todo mundo calar a boca ou até mesmo dando apenas uma encarada para gelar o sangue, é vibrante seguir seus passos através do filme, composta com uma personalidade que foge do arquétipo dona de casa - todavia, por trás de toda a casca grossa há uma mulher que chora escondida pela perda da filha. As dualidades da mãe de luto são orquestradas sem esforço por Frances, numa das melhores personagens da temporada. Mas sejamos realistas: ela é ajudada pelos próprios personagens masculinos, cada um mais babaca que o outro - o único sensato é, que rufem os tambores, o xerife negro.

Porém não se iluda, achando que todos os homens do filme são malvados enquanto a protagonista é uma princesa e ícone de comportamento a ser seguido. O roteiro não passa a mão na cabeça de ninguém, e até mesmo Mildred possui suas falhas - como na sua relação com James (Peter Dinklage), o anão. Ela não foge da massa que o vê como uma pessoa de segunda categoria, e, apesar de não destratá-lo, vê suas investidas com vergonha ou como uma piada. O preconceito está enraizado dentro do ser humano através de nossas práticas sociais, e fugir dele é um desafio diário.


Num paralelo gritante, o segundo grande baque da obra é o mesmo dado por "Manchester À Beira Mar" no ano passado. Ao invés de deitar para o melodrama, "Três Anúncios" também rola para o humor negro. O espinhoso tema é trabalhado de maneira genial pelo roteiro, que introduz cenas e diálogos bombásticos, hilários e cortantes, que arrancam risos e prendem garganta. Impiedoso, McDonagh elabora situações e reviravoltas magistrais, costurando um jogo de gato-e-rato cheio de cruezas - o vocabulário de Mildred é coberto de "fuck", "shit" e "motherfucker". Uma delícia.

A primeira grande reviravolta do longa é quando Mildred se cansa da passividade e decide agir mais energicamente. Depois que os anúncios não resolveram a situação - aliás, podem ter até piorado - ela incendeia a delegacia. A cena é composta inteligentemente quando a mulher atira coquetéis molotov através das janelas da empresa que fabrica os outdoors, que, sim, se localiza exatamente em frente à delegacia, por mais irônico que isso seja - propositalmente, é claro. Só que ela não sabia um importante detalhe: Dixon estava dentro do local no momento e acaba severamente queimado. Há vários choques e tensões entre os personagens, porém Mildred claramente demonstra que não queria ter causado aquilo ao homem, por mais asqueroso que ele seja.

A segunda reviravolta acontece quando Dixon encontra um homem que narra uma noitada parecida com a noite em que a filha de Mildred morreu. Ele decide então investigar o cara e arma uma briga para coletar o DNA do suspeito - levando uma surra em seguida. Moral da história: ele aceitou apanhar para ajudar Mildred, a mesma mulher que quase o matou na delegacia.


"Três Anúncios" é filme inteligente - e relevante: o que poderia ser um festival de gritos, tiros, sangue e violência entre os personagens sofre uma guinada importante quando as duas principais peças do jogo, que se odiaram o filme inteiro, são postos em posições onde as desavenças devem ser postas de lado em nome de um bem maior. Ao invés de cair na anarquia, como esperávamos, a panela de pressão que é a obra vai diminuindo seu calor para mostrar o poder do perdão. 

É belíssimo ver como o diretor/roteirista transforma meros outdoors em verdadeiros fantasmas capazes de desenterrar ódios que colocam todos os personagens contra si. Em meio à Era Trump, "Três Anúncios" dialoga com perfeição com a camada social doente, que começa a exalar seus preconceitos. Há em todo momento uma sensação de instabilidade, com Mildred andando sobre um campo minado onde a cada esquina pode gerar a fúria de alguém. Uma cena, onde ela é intimidada por um estranho dentro do trabalho, é a encapsulação da espiral de raiva desencadeada pelos anúncios, bodes expiatórios exemplares para a população extirpar sua violência - e o alvo, uma mulher, é bom demais para não ser atingido.


Mas é evidente: Mildred não perdoou o autor do crime que desencadeou toda a história - e também pudera. Ela acabou direcionando sua raiva para os peões errados, mesmo sem nunca ter esquecido quem era o real culpado. Há coisas que não podem ser perdoadas com tamanha facilidade, e, apesar de se reconciliar com Dixon, ambos partem juntos com um plano para matar um suposto estuprador.

Todas as atitudes de Mildred são motivadas pela sua filha: a garota dizia que a mãe não se importava com ela, que coloca três outdoors gigantes em "homenagem" à filha; o culpado do crime nunca pagou pelo mesmo, e ela vai à caça de um provável estuprador para externalizar essa culpa, mais uma forma encontrada pelo roteiro para mostrar que não há o binarismo de mocinhos vs. banidos. O ser humano é complexo demais - e cheio de falhas - para isso. É claro que justiça com as próprias mãos é uma atitude errada, mas o dúbio final é um regozijo, a forma que McDonagh achou para por reticências onde não pôde colocar um ponto final.

"Três Anúncios Para Um Crime" não é apenas uma obra-prima pela sua poderosíssima realização, é um filme certo na hora certa. Nessa onda feminina de denúncias contra abusos, acompanhar a luta de uma mãe em busca de justiça pela morte da filha é a história que precisávamos ver. Com seus personagens escancaradamente conturbados e situações ácidas, temos em mãos um filme atemporal - ou você acha que Frances McDormand virando caçadora de estuprador e colocando todos os homens ao redor em seus devidos lugares não será um clássico?

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