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Crítica: não há amor familiar maior do que o de "O Sacrifício do Cervo Sagrado"

Novo filme do diretor de "O Lagosta" continua seu cinema bizarro com uma família amorosa e unida
Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando perguntado "Qual o seu diretor em atuação favorito?", muitos respondem Quentin Tarantino, ou Christopher Nolan, Tim Burton, Wes Anderson e Sofia Coppola. Todos esses são mesmo bons diretores, mas o meu favorito é Yorgos Lanthimos. Pode soar bem wannabe-cult ter como diretor favorito um grego que dificilmente está na boca das pessoas, porém suas obras falam por si só.

Yorgos teve seu apogeu com "Dente Canino" (2009), vencedor do prêmio de "Melhor Filme" em uma das principais mostras do Festival de Cannes e indicado ao Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro", o que abriu as portas para o diretor financiar projetos cada vez mais ambiciosos. Ele é mais famoso por "O Lagosta" (2015), que rendeu sua segunda indicação ao Oscar, na categoria "Melhor Roteiro Original", e é exatamente em seus roteiros que habita a máxima do cinema lanthimoniano.

Todos os seus filmes possuem premissas completamente absurdas, estranhas ou curiosas, para dizer o mínimo. Em "Dente Canino", seguimos uma família cujo os filhos nunca passaram do portão de casa, desenvolvendo mentalidades completamente diferentes do resto do mundo. Em "Alpes" (2011), um grupo cria uma empresa onde as pessoas podem contratá-los para substituírem algum familiar que morreu. E em "O Lagosta", ser solteiro é proibido, e eles devem encontrar um parceiro em 45 dias ou serão transformados em um animal e solto em uma floresta. Pois é.


É claro que em seu mais novo filme, "O Sacrifício do Cervo Sagrado", não seria diferente, mesmo a premissa não soando tão absurda em uma primeira lida. O longa conta a história de Steven (Colin Farrell), um cirurgião que vira amigo de Martin (Barry Keoghan), adolescente que perdeu o pai na mesa de cirurgia do médico. Em um misto de pena e culpa, o protagonista acaba colocando o jovem debaixo de suas asas, a pior coisa que poderia ter feito.

A primeira característica do estilo de Lanthimos, e que está em todos seus trabalhos, são as atuações quadradas. Ele dirige os atores para que estes soem quase robóticos. Além de ser um artefato de cunho estilístico, isso serve para compor uma ideia de que seus filmes não se passam em nossa realidade. São como mundos paralelos, ou versões diferentes do nosso mundo. Os personagens agem, reagem e respondem de maneiras diferentes do esperado, o que pode espantar de início, porém faz parte da bizarrice que acompanha o texto.


No desenrolar da relação entre Steven e Martin, o homem decide apresentar o garoto para sua família: a esposa Anna (Nicole Kidman), sua filha mais velha, Kim (Raffey Cassidy), e o caçula, Bob (Sunny Suljic). Em retorno à gentileza, é a vez de Steven conhecer a família de Martin, que se resume em sua mãe (interpretada pela Alicia Silverstone), que abertamente dá em cima de Steven, para seu completo desconforto.

Após o acontecido, ele começa a evitar Steven, tanto para não precisar declinar de novos convites quanto por perceber que a relação saiu do controle, o que gera a ira do garoto. O que ele faz? Não há uma palavra específica, mas chamarei de "praga": Martion joga uma praga na família, que consiste em quatro etapas, começando do caçula até Anna. Primeiramente eles ficarão paralíticos e não conseguirão mais andar. Depois, se recusarão a comer, até que seus olhos comecem a sangrar, o penúltimo estágio. O último, então, é a morte. Para encerrar a praga, Steven deve matar um dos três, caso contrário todos morrerão.

O filme em momento nenhum explica como Steven faz isso - e, sinceramente, não importa. Para o garoto, aquela é uma forma de justiça para compensar a morte do pai. "Você matou um membro da minha família e agora vai ter que matar um da sua", diz ele. O que antes era uma situação em que Steven se tornara um pai postiço acaba se rebelando contra ele.


Os estágios de negação são seguidos à risca, com Bob passando por inúmeros exames médicos que não encontram o motivo para sua paralisia, sendo, para a mãe, um distúrbio psicológico, e para o pai, pura invenção do garoto, até que a filha também sofre da praga. A confirmação do poder de Martin vem quando a menina volta a andar momentaneamente enquanto conversa com ele por telefone. É o momento em que a mãe vê que realmente não se trata de uma doença, e que deve tomar medidas rápidas.

A partir de então começa um grande jogo de interesses dos três membros fadados a sofrerem pela praga. Tudo começa de maneira sutil, sendo mais escancarado com o passar do tempo e o último estágio da maldição chegando. O que antes era um família unida e amável como qualquer outra vai expondo suas rachaduras de modo feio.

Sabe aquela máxima de que os pais não têm filhos favoritos? A maior furada, mas o que antes era acobertado agora está aí para todo mundo ver. A mãe é claramente mais apegada ao garoto, enquanto o pai tem uma relação mais estreita com a menina. E esta, mais velha, usa dessa verdade para manipular o garoto e conseguir sair viva da situação, que rende a malfadada cena do mp3, quando ela pede, na maior naturalidade do mundo, para ficar com o aparelho do menino depois que ele morrer.


Como é cada um por si, todos vão pouco a pouco cedendo à música tocada e dançando conforme o ritmo. Kim vai até Martin e se oferece para fugir com ele. Bob começa a fazer tudo o que o pai mandava, como cortar os cabelos e se oferecer para regar as plantas. Se antes o garoto queria ser oftalmologista como a mãe, agora quer ser cardiologista como o pai. E até a mãe não resiste: tenta agradar o marido sexualmente e diz que eles podem matar um dos filhos, afinal, ainda podem fazer outro. Vale tudo para se salvar.

E é de uma ironia trágica perceber que tudo isso acontece por causa do pai, um poço de erros consecutivos. Ele não assume, mas causou a morte do pai de Martin durante sua cirurgia - representada pela cena de abertura, mostrando que Steven tem sangue nas mãos. Além de negar, o homem joga a culpa para o anestesista, um padrão comportamental que tende a se repetir: durante um encontro com o diretor da escola dos filhos, ele pergunta qual deles o diretor gosta mais, tentando pôr a responsabilidade de matar um dos dois em cima de outra pessoa.


Em um filme regido por homens, todos, com exceção de Bob, são recheados de problemas. Martin é um sociopata; o anestesista pede favores sexuais para Anna; e Steven então, nem se fala. A obra se passa em uma realidade aquém, porém mostra como funciona a cultura do estupro quando a forma que o homem se excita é vendo Anna fingindo estar inconsciente, um comportamento repetido por Kim.

E Bob é o único macho a sair desse padrão por ser puro, inocente e sem segredos. Ele é o cervo sagrado. Mas a morte do garoto para salvar a família é revelada desde o começo da praga para quem é atento: há um desenho de cervo em cima da cama quando o menino fica paralisado.

Com o comportamento de sempre colocar o peso da culpa em cima de outra pessoa, é claro que Steven não escolhe Bob: ele faz um jogo de roleta-russa para matar um dos três aleatoriamente. Nem na hora mais derradeira o pai consegue assumir a responsabilidade de toda a situação, que teve seu estopim graças a ele. É certo que Martin é o culpado por aquilo, pois, como bem lembra Anna, quem está pagando pelo erro de Steven são pessoas inocentes, porém a recusa do pai em aceitar o problema é o pontapé de todo o filme.


Muito se debateu sobre a figura de Martin. Afinal, o que ele é? O longa não nos entrega uma resposta definitiva, todavia há simbolismos que podem dar pistas: o garoto seria uma espécie de Jesus ao contrário: ao invés de fazer aleijados andarem, ele tira as pernas de suas vítimas. Isso fica claro quando Anna beija seus pés, no intuito, também, de obter a salvação (em vão).

O roteiro foi baseado na tragédia de Ifigénia, de Eurípedes, que conta a história de um pai que mata um dos filhos para saciar a ira de um deus, com Ifigénia, a escolhida para o sacrifício, se transformando em um cervo após sua morte (daí o título do filme). A peça se utiliza da ironia trágica para contar os passos da protagonista, da mesma forma que o roteiro de Lanthimos e Efthymis Filippou narram a loucura dessa família.

"O Sacrifício do Cervo Sagrado" não visa tecer críticas sociais tão evidentes como em "O Lagosta"; a obra prefere compor uma família disfuncional que só percebe suas falhas quando pressionada diante de uma situação extrema. Claro, a bizarrice do cinema do diretor está impregnada em cada segundo, em um filme incômodo que aponta o dedo ao revelar o quanto a sagrada família pode ser o antro que renderá tragédias - além de continuar nos fazendo olhar torto pelas cenas desconcertantes, como Martin pedindo para ver os pelos de Steven. Caminhando sobre o gênero suspense, um fértil campo não tão explorado pelo diretor - e capinado com maestria aqui, o longa é uma exposição do amor familiar no mais destilado modo, lanthimonianamente falando, claro.

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