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Crítica: todo o conformismo no macabro "A Bruxa" é apenas a celebração do caos

Um dos marcos do terror moderno, "A Bruxa" sai das obviedades do fast-food hollywoodiano para se tornar clássico instantâneo
Atenção: a crítica contém spoilers.

O maquinário fast-food que se transformou Hollywood para os filmes de terror continua (e continuará) trazendo má fama ao gênero e enchendo os cofres de suas produtoras. O século XXI saiu há pouco das fraldas e já tivemos vários grandes destaques. O que centenas de exemplares, como "O Massacre da Serra Elétrica" (2003), "Horror em Amityville" (2005), "Filha do Mal" (2012), "Ouija: O Jogo dos Espíritos" (2014), "Annabelle" (2014), "Floresta Maldita" (2016) e "Boneco do Mal" (2016), têm em comum? São sucessos de bilheteria e fracassos de crítica. E aí o mundo gira, e assim o mercado anda.

Quem perde com tudo isso? Todo mundo. O gênero, o público, o próprio cinema. Os donos das produtoras podem até enricar (e muito) com a patifaria, mas estão lucrando em cima do demérito da arte que eles próprios se propõem a fazer. De vez em quando, bem raramente mesmo, surge um filme que decide caprichar mais no roteiro, trazer um clima mais elaborado, sair da mesmice. Em 2015 tivemos o fabuloso “Boa Noite, Mamãe”, que foi contra tudo o que esperávamos de um filme de horror e ajudou a fortalecer o ato que congelar o espectador na cadeira. Já em 2016 fomos agraciados com “A Bruxa”, que também vem com uma proposta mais intimista e que busca fisgar o púbico lentamente.

Assim como os enlatados de Hollywood, há um paralelo entre “Boa Noite, Mamãe” e “A Bruxa”. Vários, na verdade. O primeiro, como já citado, é o ritmo diferenciado, distante dos sustos a cada segundo e cataratas de sangue falso jogada na tela. O segundo é: ambos foram feitos fora de Hollywood – “Boa Noite” é austríaco e “A Bruxa” canadense. O terceiro foi a forma como os dois se venderam. Seus trailers, principalmente os voltados para o mercado americano, criavam a ideia de agilidade, tensão constante e sustos elevados, material que o público está acostumado a receber, e completamente diferente dos filmes reais.


Ao colocar o gostinho no público de forma “torta”, esse, ao assistir à obra completa, acha tudo aquilo um saco. Não dá medo, não faz sentido, o que é aquilo na tela? Não se trata de uma subestimação do espectador, mas, ao termos – em abundância – filmes de terror mastigados que não dispensam os mais ridículos sustos, o público não se encontra naturalizado em frente a um longa que foge do lugar comum, que busca desenvolver subjetivamente o que está sendo passado na tela.

No caso de “A Bruxa”, seu marketing foi pesado. Por meses a fio tivemos as redes sociais infestadas de noticiais sobre o quão assustador ele é, com citações de Stephen King sobre o quanto o filme o assombrou e até matérias dizendo que satanistas o exibiram gratuitamente pela sua “experiência satânica transformadora”. É para fazer todo mundo correr aos cinemas.

E é aqui que reside toda a questão: se não fosse por essa propaganda, o filme chegaria a quantas salas de cinema? Ele estaria fadado às salas “cult” das grandes metrópoles, sem poder concorrer com sessões acessíveis nos cinemas dos shoppings, entupidos pelos blockbusters americanos. Mesmo vendendo o filme de forma errônea, essa estratégia é usada para fins justos: levar o filme para o maior número possível de lugares. É a lei de mercado.


“A Bruxa” conta a história de uma família no sec. XVII que é excomungada de sua aldeia puritana cristã. Com cabeça erguida, eles partem para uma floresta isolada e recomeçam a vida à base da agricultura familiar. Durante um passeio de Thomasin (Anya Taylor-Joy) com Samuel, a filha mais velha perde misteriosamente o bebê, sequestrado por uma bruxa (a cena é icônica). A partir dessa tragédia, a família começa a ruir.

Robert Eggers, diretor e roteirista do filme, coloca medo no nosso imaginário logo no início: apenas nós testemunhamos o que acontece com o bebê. Tudo em luz natural, vemos os traços assustadores da bruxa sem realmente distinguir como ela é e nem o que está fazendo com o bebê. A genial trilha sonora completa o enigma audiovisual do momento, criando uma sequência tensa que não mostra explicitamente o que houve. As imagens confusas são pinceladas pelos sons diegéticos¹ e da trilha, conseguindo consegue criar áurea de perigo na mente de quem vê (e ouve).

A ruptura causada pela perda de Samuel é estopim para os demônios da família se apossarem de seus medos, individuais e coletivos. A controladora mãe (Kate Dickie, a Lady Lysa da série "Game of Thrones" - aqui tão tresloucada quanto) é a primeira a cair, desesperada ao cogitar a alma do bebê no Inferno: graças à excomunhão da família da aldeia, a criança não era batizada – o que já nos a crer que a bruxa o levou exatamente por isso. O pensamento devora a sanidade da mãe, infectando a todos, só uma das etapas da degradação psicológica imposta pela situação.


Depois, as plantações começam a morrer, os animais começam a secar e a cabra, que antes dava leite, agora dá sangue. O único animal que parece forte é Black Phillip, o bode. As duas crianças mais novas, os gêmeos Mercy e Jonas, afirmam que o bicho fala com eles e brincam cantando uma canção sobre o animal: “Black Phillip, Black Phillip, uma coroa cresce em sua cabeça. Black Phillip, Black Phillip, rei de todos. Black Phillip, Black Phillip, rei do céu e da terra. Black Phillip, Black Phillip, rei do mar e da areia. Nós somos seus servos, nós somos seus homens”.

A existência do bode no seio familiar é peça fundamental no vírus que se propaga rapidamente naquela casa, já que Black Phillip é o próprio Satanás, escondido na pele do bode - e a música cantada pelas crianças nada mais é que um cântico de adoração ao demônio. Como o slogan do filme entrega, “o mal assume diversas formas”, e vemos essas formas, sempre como bichos, durante o filme: Lúcifer, além do bode, se transforma num coelho e num corvo.

Caímos então na célebre frase do filme “Anticristo” (2009), de Lars Von Trier: “a natureza é a igreja de satã”. A família está engolida pela natureza, que se volta contra ela através das pragas do próprio Satanás (na pele de seres também naturais), retirando suas reservas e torturando psicologicamente seus servos, esses correndo de um lado ao outro sem saber o que de fato está acontecendo.


A fome e os surtos da mãe, que arquiteta um plano para quase vender Thomasin - já que ela é vista pela matriarca como responsável pela perda do bebê - fazem com que a garota e Caleb (Harvey Scrimshaw), o irmão do meio, fujam para a floresta. Mas lá eles esbarram com Satanás na forma de um coelho e se desencontram, com o garoto caindo nas garras da bruxa.

O interessante é que a bruxa encontrada por Caleb é diferente da bruxa do início do filme. A criatura se transforma nos desejos de quem a vê para conseguir se aproximar, sendo uma voluptuosa mulher na diante o garoto. Em alguns momentos do longa, Caleb é pego olhando para o decote da irmã, podendo exorcizar seu desejo apenas com a bruxa oferecendo-se diante dele. E é isso que “A Bruxa” retrata: a evocação dos medos e desejos mais profundos do ser humano, entregues de bandeja por meio das forças diabólicas que rondam aquele lugar.

E o lugar é importantíssimo para nossa assimilação do filme. Estamos falamos de uma floresta no meio do nada em plena aldeia puritana do séc. XVII - que também reflete um recorte histórico das migrações puritanas nos EUA dos anos 1620-40. O fanatismo religioso é tão opressor quanto o meio, onde vemos a família sacrificando sua carne em prol de um ser maior, de uma salvação divina. Sua fé é o que os mantém vivos e os fazem continuar. A penitência, o pecado e a misericórdia são fatores que ditam suas existências, com as forças do bem e do mal sendo entidades reais que alteram a realidade facilmente, podendo salvar ou destruir. Porém, àquela altura, escapatória não era mais uma opção.


Todas as desgraças acometidas se encapsulam com a cena clímax, aonde Thomasin vai de encontro com Black Phillip, que, sim, como os irmãos mais novos afirmavam, fala. Satanás deixa as cerimônias para assumir sua real forma, mas apenas momentaneamente. Ele, fora do certeiro enquadramento, é visto sem foco, mas sua voz arrastada e a mão sobre o ombro da garota conseguem gerar arrepios. Ela, com nada a perder, liberta seu corpo para os prazeres da vida que a religião tanto oprimiu, num grito de libertação feminina, reunido num clã de bruxas ensandecidas que voam sobre a terra em nome de Satanás, numa das melhores sequências do terror neste século. A composição homeopática de quadros é primorosa, só um dos exemplares de um filme riquíssimo em termos narrativos e técnicos – todo o trabalho fotográfico é nada menos que estupendo.

“A Bruxa” trata de muitos subtextos, mas é, acima de tudo, uma celebração do caos. É a regurgitação fidedigna de todos os maiores medos que nós temos: medo da solidão, perda, dor, morte, do mal em si. O filme não é de fato assustador no modo convencional da palavra – achar que terror é apenas susto empobrece todo o gênero –, é macabro pelas suas metáforas, com algumas passagens perturbadoras que chocam pela crueza e vivacidade do mal – a do bebê, da possessão e, principalmente, a do corvo, são inesquecíveis.

Trata-se de um legítimo conto macabro de bruxas, bem ambientado e narrado, cheio de simbolismos e gore pontual que constroem um filme deliciosamente lento e atmosférico. O ato de assistir no cinema, com várias pessoas que talvez não estejam prontas para um filme não-comercial, pode empalidecer o impacto do todo, mas “A Bruxa” burla as barreiras para despontar como o melhor terror de 2016 – e um dos melhores filmes dessa década.

¹ Diegese é a dimensão ficcional da narrativa, é tudo aquilo que acontece no mundo criado no filme. No caso, sons diegéticos são os sons gerados pelos elementos dentro da realidade do filme, fora da trilha-sonora, ou seja, os sons que os personagens ouvem.


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