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Você não precisa gostar de funk para ser contra o projeto de criminalização do gênero

Hoje espaço para as minorias cantarem das suas dores aos prazeres, o gênero majoritariamente periférico tem incomodado muita gente.
No mesmo ano em que artistas como MC Carol e MC Bin Laden representaram a cultura brasileira no palco do Red Bull Music Academy Festival, em Nova York, o Brasil se propôs a discutir a possível criminalização do funk, partida de uma sugestão do empresário Marcelo Alonso no site do Senado, no qual reuniu mais de 20 mil assinaturas – número suficiente pra que a ideia seja enviada para análise pela Comissão de Direitos Humanos.

Em sua proposta, o empresário, que também mantém uma página do Facebook chamada “Funk é lixo”, afirma que o gênero parte de uma “falsa cultura” e promove, entre outras coisas, crimes como estupro e pedofilia, principalmente contra adolescentes menores de idade.

O relator do caso no Congresso Nacional será o senador Romário (PSB/RJ), que já se manifestou contra a proposta e, para somar a discussão, quer levar artistas como Anitta, Valesca Popozuda, Nego do Borel e MC Marcinho para opinarem sobre o assunto.

Nos últimos anos, foram muitas as conquistas do funk para a cultura e indústria brasileira. O gênero, que atualmente lidera as principais paradas de plataformas como Youtube e Spotify, foi responsável por revelar algumas das maiores artistas do nosso cenário atual e, dos grandes artistas aos independentes, se tornou um importante meio de movimentação econômica, gerando empregos e se transformando numa fonte de renda em diferentes dimensões.

Bem distante da visão retrógrada do autor dessa proposta de criminalização, o funk também se viu como um meio de protesto, dando voz para minorias e artistas de periferia, que cantaram dos seus prazeres às dores, dançando da ostentação dos morros paulistas e cariocas à liberdade de serem vadias todos os dias, da luta e resistência negra à luta e resistência LGBTQ e feminista. E, no fundo, a gente sabe que isso incomoda.

Menos de um ano desde que o país se viu presidido por um governo ilegítimo, foram muitas as perdas e lutas dos movimentos sociais para que seguissem existindo. O conservadorismo, alastrado de forma sintomática por todo o mundo, aqui se viu apoiado pelos líderes dos partidos no poder e ainda que, numa democracia, a voz do povo devesse ser a mais alta, essa é aquela que menos escutamos, enquanto assistimos à deterioração de nossos espaços e direitos, como foram os casos de luta contra a pichação e grafite e, posteriormente, aos dependentes químicos da região da Cracolândia, em São Paulo. 

Isso porque não falamos da retirada de bens dos moradores de rua, dos presos políticos ao longo das últimas manifestações democráticas, da empatia pelos brancos de turbante que inexiste com as vítimas diárias do racismo e do silêncio das panelas em todas as vezes que cobramos que olhassem para seus respectivos rabos.

Pensando assim, não é difícil compreender como uma proposta dessas angariou vinte mil assinaturas tão facilmente e, neste ponto, nos vem à lembrança do documentário “A 13ª Emenda”, da Netflix, no qual é discutido a maneira como os Estados Unidos perpetuaram a escravidão até os dias atuais por meio do seu sistema de encarceramento em massa, e, numa fala específica do assessor de Nixon, sobre a campanha presidencial americana de 1968, explica a maneira como eles criminalizaram as comunidades periféricas indiretamente, ao passo que tornavam elementos associados a elas como algo prejudicial para a sociedade.

A campanha de Nixon em 1968, e a Casa Branca de Nixon após isso, tinham dois inimigos: a esquerda pacifista e as pessoas negras. (...) Nós sabíamos que não poderíamos tornar ilegal tanto ser contra as guerras ou negros, mas ao fazer o público associar os hippies com a maconha e os negros com a heroína, e depois criminaliza-los rigidamente, nós podíamos corromper essas comunidades. Nós podíamos prender seus líderes, vasculhar suas casas, acabar com suas reuniões e caluniá-los noite após noite nos noticiários. Nós sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? É claro que sim, explicou John Ehrlichman.

Qualquer semelhança com a nossa realidade, dificilmente será mera coincidência.

Nos últimos anos, a esquerda brasileira se viu fragmentada e fragilizada, enquanto assistiu a direita se rearticular e fortalecer, construindo novos nomes e partidos, ainda que embasados sobre os mesmos velhos discursos. Da pichação ao funk, passando pelos moradores da Cracolândia, entre tantos outros tópicos sucateados pelas visões elitistas e higienizadas dos que estão no poder, é inevitável a associação desses elementos com a periferia, que mesmo antes dessa ascensão, já lidava e sobrevivia numa realidade diferente daquela que assistia na televisão. E, quando teve a menor oportunidade de muda-la, rapidamente foi sufocada pela ambição dos que já estão por cima da carne seca.

Pra quem defende que o funk sequer deve ser visto como arte, seja por suas batidas ou letras que, para muitos, incentivam coisas impróprias, vale uma volta no tempo, a fim de relembrar que essa batalha também foi enfrentada por outros gêneros negros e de origem periférica, como nos anos 70 aconteceu com o samba, gênero de matriz africana, hoje reivindicado pela cantora branca Mallu Magalhães em rede nacional, e também com o rap, perseguido e marginalizado até os dias atuais, com ênfase aos anos 90, mesma época em que Os Racionais MCs lançaram o seu primeiro CD.

Ainda é cedo para saber se esse projeto terá ou não consistência o suficiente para culminar na criminalização de todo um gênero musical, mas o simples fato da proposta ter chegado ao congresso, bem como se tornar motivo de discussão em meio aos tantos problemas e escândalos que enfrentamos na política atual, diz muito sobre o quanto ainda precisamos lutar contra o elitismo, seletividade e viralatismo da sociedade que fazemos parte. E que façamos isso usufruindo de toda a nossa liberdade de expressão e cultura que, goste dela, de onde vem e de quem a faz ou não, o mínimo que devem fazer é respeitar.

No Spotify, aproveitamos para estrear a playlist “Vem Sarrando”, com alguns dos maiores sucessos do funk atual, incluindo nomes como Anitta, MC Carol, Pabllo Vittar, Lia Clark, Tati Quebra Barraco, Livinho, Kevinho, Zaac, Don Juan, Rincon Sapiência, Delano e vários outros.

Ouça e siga abaixo:

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